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No período da adolescência, durante o crescimento, gerámos fortes vínculos emotivos com a música. Por isso, há álbuns que não se esquecem. Bandas que já não existem, mas que fazem parte do nosso lote de preferências. Com o passar dos anos, há canções icónicas para milhões de pessoas, fazendo parte da banda sonora da nossa vida e que, quando são ouvidas, trazem à memória momentos relembrados ao pormenor. E nunca conseguiremos esquecer os discos que nos marcaram. É nesses discos que o nosso gosto musical ganhou raízes, os quais não trocamos por novas obras que vão surgindo em catadupa nos tempos tecnológicos que vivemos, pois escasseia a criatividade qualitativa para que alguma obra se afirme como um clássico. É então que, aqueles que conservam o hábito de ouvir um álbum do princípio ao fim, viajam pelos discos coleccionados ao longo dos anos.

 

Longe vão os tempos em que, anualmente, uma mancheia de discos tinha a capacidade de surpreender e deslumbrar em cada audição. Felizmente, de quando em quando surge um disco bem-sucedido. Assim, convidamo-lo a conhecer um long playing editado em Março de 2010, que foi n.º 1 na Bélgica, ocupando o lugar secundário na Alemanha, Canadá e Polónia, terceiro em Itália, República Checa e Suiça, quarto na França e quinta posição na Suécia.

 

«Scratch my back», colecção constituída por uma dúzia de canções que giram em torno das preferências do cantor, assinadas por outros autores. No entanto, ao invés de criar covers como outros artistas que pensam estar a evolver e a dar passos em frente na carreira, mas apenas estão a andar em círculos com versões pirosas (recordo-me do traje dado por Will to Power ao clássico «Baby, i love your way», de Peter Frampton) e, em vez de recriar os seus próprios êxitos – situação mais cómoda que seria vista como mais um best of – evitando as suas origens musicais do rock progressivo e sem perder o carácter inovador patente na variedade de estilos desde o seu primeiro álbum a solo (1977), decidiu fazer coisas novas, tomando novos rumos através da música clássica. Atestando esta afirmação, está o facto de ter abdicado do que os Deep Purple, Metallica ou Scorpions fizeram ao juntarem à orquestra os instrumentos habituais de banda rock, dando ênfase diferente aos arranjos de temas rock, retirando os instrumentos agregados a esse estilo musical, como guitarras e bateria, efectuando uso, somente, das diferentes tonalidades dos sons e dos picos de ondas sonoras gerados pela orquestra.

 

Em época de quebra de vendas discográficas, o trabalho iniciado em 2008, constituiu um ousado desafio: o de explorar uma linguagem interessante e emocionante proveniente dos 46 instrumentistas que constituíram a orquestra dirigida por Ben Foster, concedendo uma dimensão dissemelhante no capítulo do timbre e das tonalidades aos temas pop/rock. Tratando-se de canções cuja origem em nada gira em torno da música clássica, o ouvinte poderá pensar duas vezes adiando a escuta do disco, por supor que o ambiente será sombrio ou hipocondríaco… Saiba que, este álbum, com 53 minutos de duração, formado de versões, foi construído ao nível de arranjos como se fosse material em bruto de forma a reinventar os conhecidos temas. E à medida que a maioria dos temas foram reconstruídos por John Metcalfe, isentos de contratempos de bateria, o naipe dos instrumentos de percussão e de cordas exploraram a sensação de energia bem-sucedida nas cadências rítmicas presentes no registo. Disso é um notável exemplo a sofisticação dos crescendos e a extensão das cordas graves e a riqueza sonora e dinâmica dos violinos que enaltece a admirável interpretação de «My body is a cage» (Arcade Fire) que contou com a participação do coral da Christ Church Cathedral Oxford, o assaz «Mirrorball» (Elbow) e o substancioso início de «Après moi» (Regina Spektor).

 

O disco começa com a canção vanguardista «Heroes», de David Bowie, seguindo-se o complexificado «The boy in the bubble» (Paul Simon), o apuradíssimo «Listening wind» (Talking Heads), os sensitivos «Flume» (Bom Iver), «Power of the heart» (Lou Reed) e «The book of love» (The Magnetic Fields), executado pela Orquestra Húngara, dirigida por Pejtsik Péter, no qual a filha Melaine empresta a voz, e a balada «Philadelphia» (Neil Young). Por sua vez, a delicadeza da dicção e o sussurro dos versos fecundem a interpretação de «Street Spirit (fade out)» (Radiohead) e doutras faixas mencionadas, visto que, sendo a canção a restauradora da emoção e não a emoção a geradora da canção, o acto de cantar deste artista sexagenário é um instrumento que reproduz as emoções do autor (como tão bem salientou o meu amigo José Pestana, versado em música clássica mas de gosto ecléctico, na primeira audição que fez ao registo discográfico, recordando-se do concerto da banda onde o cantor britânico era vocalista, ocorrido em Março de 1975, no Pavilhão do Dramático de Cascais).

 

À quem diga que «III» (1980) e «So» (1986) são os melhores cartões de visita à discografia de Peter Brian Gabriel. Mas, aquando a edição de «Scratch my back», fiquei surpreendido, considerando nas audições espaçadas que vou efectuando, um dos melhores discos dos anos 10 do novo milénio, revelando bom gosto e talento tão intenso, capaz de nutrir a alma, onde a emoção de ouvir as covers é semelhante a escutar um magnífico álbum de originais (recordo-me de «Spirit of Eden», dos Talk Talk), ao qual a nossa agradibilidade rende-se. Certamente, há bastantes pessoas que não gostam da obra de Gabriel, mas aderiram a este álbum, enquanto outras, consideradas “gabrielanas”, poderão sentir indiferença. Pena é que o éter português da Antena 2 continue a ignorar este registo…

 

texto de: Ghost4U

«Scratch my back»

 

Etiqueta discográfica: Real World Productions Ltd.

Referência: PGLP12

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